Último
beijo de amor. (Álvares de Azevedo)
Well
Juliet! I shall lie witc thee to night! Shakespeare. Romeu e Julieta.
A
noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.
Uma
luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher
vestida de negro. Era pálida, e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na
mão, se derramava macilenta nas faces dela e dava lhe um brilho singular aos
olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que fazem
descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus
olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e
gotejante da chuva, disséreis antes—o anjo perdido da loucura.
A
mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre essas faces
dormidas um rosto conhecido.
Quando
a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo, alongou os lábios...
Mas uma ideia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso
embranqueceu-lhe os beiços: o olhar tornou-se-lhe sombrio.
Abaixou-se
junto dele, depôs a lâmpada no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas
dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu e sua mão passou
na garganta dele. Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida
levantou-se. Tremia; e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro...
Era um punhal... Atirou-o no chão. Viu que tinha as mãos vermelhas—enxugou-as
nos longos cabelos de Johann...
Voltou
a Arnold; sacudiu-o.
—Acorda
e levanta-te!
—Que
me queres?
—Olha-me:
não me conheces?
—Tu!
e não é um sonho? És tu! oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem
ver-te! Cinco anos! E como mudaste!
—Sim:
já não sou bela como há cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor
de beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento
da pureza, e serão belas... Revolvei-as no lodo... e, como os frutos que caem e
mergulham nas águas do mar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobre! Outrora
era Geórgia, a virgem, mas hoje é Geórgia, a prostituta!
—Meu
Deus! Meu Deus!
E o moço sumiu a fronte nas mãos.
—Não
me amaldiçoes, não!
—Oh! deixa que me lembre: estes cinco anos que
passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo à queima-roupa, meu
acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isto é
um sonho! Oh! Lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o céu,
cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas! Lembremo-nos da primavera!...
—Tuas
palavras me doem... É um adeus, é um beijo de adeus e separação que venho
pedir-te. Na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O
amor do libertino e da prostituta! Satan riria de nós. E no céu, quando o
túmulo nos lavar em seu banho, que se levantara nossa manhã de amor. . .
—Oh!
Ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste, Geórgia, que me fora
melhor ter morrido devorado pelos cães na rua deserta, onde me levantaram cheio
de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ébrio, do que
apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do céu? Não pensaste que,
após cinco anos, cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de
vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para deixar-te?
—Compaixão,
Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Vês, minha sina é
negra: nas minhas lembranças há uma nódoa torpe... Hoje! É o leito venal...
Amanhã!... só espero no leito do túmulo! Arnold! Arnold!
—Não
me chames Arnold! Chama-me Artur como dantes. Artur! Não ouves? Chama-me assim!
Há tanto tempo que não ouço me chamarem por esse nome! ... Eu era um louco!
Quis afogar meus pensamentos e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando
em toda a parte lágrimas… nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e
nas mesas molhadas de vinho! Vem, Geórgia! Senta-te aqui, senta-te nos meus
joelhos—bem conchegada a meu coração. . . tua cabeça no meu ombro! Vem! Um
beijo! Quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus
lábios. Respire-o eu e morra depois!... Cinco anos! Oh! Tanto tempo a
esperar-te, a desejar uma hora no teu seio! Depois... escuta... tenho tanto a
dizer-te! Tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! E dir-te-ei toda a minha
história! Minhas ilusões de amante e as noites malditas da crápula, e o tédio
que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem!
Contar-te-ei tudo isso, dir-te-ei como profanei minha alma e meu passado… e
choraremos juntos… e nossas lágrimas nos lavarão como a chuva lava as folhas do
lodo!
—Obrigada,
Artur! Obrigada!
A
mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de
amor.
—Escuta,
Artur, eu vinha só dizer-te adeus! Da borda do meu túmulo; e depois contente
fecharia eu mesma a porta dele... Artur, eu vou morrer!
Ambos
choravam.
—Agora
vê - continuou ela. Acompanha-me: vês aquele homem?
Arnold
tomou a lanterna.
—Johann!
morto! Sangue de Deus! Quem o matou?
—Geórgia.
Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara
numa casa de jogo. Geórgia a prostituta vingou nele Geórgia, a virgem. Esse
homem foi quem a desonrou! Desonrou-a... a ela que era sua irmã!!
—Horror!
Horror!
E
o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.
A
mulher ajoelhou-se a seus pés.
—E
agora adeus! Adeus que morro! Não vês que fico lívida, que meus olhos se
empanam e tremo... e desfaleço?
—Não!
Eu não partirei. Se eu vivesse amanha haveria uma lembrança horrível em meu
passado...
—E
não tens medo? Olha! É a morte que vem! É a vida que crepuscula em minha
fronte. Não vês esse arrepio entre minhas sobrancelhas? . . .
—E
que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanha seria terrível; e à cabeça
apodrecida do cadáver não ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte; a
campa e silenciosa. Morrerei!
A
mulher recuava... recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos
dela… Ela deu um grito, c caiu-lhe das mãos Era horrível de ver-se. O moço
tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois
gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo...
A
lâmpada apagou-se.
NOITE NA TAVERNA - ÁLVARES DE AZEVEDO
01. Como o narrador descreve a mulher que
acaba de entrar na Taverna?
02. A mulher entra na Taverna e procura por
alguém com a ajuda de uma lanterna. Encontrou Arnold e Johann. Como a mulher
reagiu ao encontrá-los?
03. Destaque do texto a passagem em que Giorgia,
a mulher misteriosa, mata Johann.
04. Percebe-se que o conto “Último beijo de
amor” é a sequência dos acontecimentos ocorridos no conto anterior “Johann”. Desse
modo, explique o que aconteceu com Arthur após o duelo com Johann.
05. O retorno ao passado, característica do
Romantismo, é visto no conto através de que artifício?
06. “A mulher recuava… recuava. O moço
tomou-a nos braços, pregou os lábios nos dela… ela deu um grito, e caiu-lhe das
mãos. Era horrível de ver-se. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o
no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de
um corpo…”
Intertextualidade
é a relação que se estabelece entre dois textos quando um deles faz referência
a elementos existentes no outro. Desse modo, indique com que texto da
Literatura Universal a passagem acima dialoga?
GABARITO
01. Tez lívida, olhos acesos, lábios roxos,
mãos de mármore e a roupagem escura e gotejante da chuva.
02. Ao encontrar Arnold, a mulher
ajoelhou-se e quis beijá-lo, porém não o fez. Quando chegou a Johann, que
dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços: o olhar tornou-se-lhe sombrio.
03. “Abaixou-se junto dele, depôs a lâmpada
no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre
Johann. A fronte da mulher pendeu e sua mão passou na garganta dele. Um soluço
rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia; e ao segurar
na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro... Era um punhal... Atirou-o no chão.
Viu que tinha as mãos vermelhas—enxugou-as nos longos cabelos de Johann...”
04. Arthur não morre no duelo com Johann. Ele
fora levado a um hospital e logo após sai vagando pelas ruas a espera de sua
amada.
05. O uso do flash-back.
06. Romeu e Julieta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário